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CONTO “O embondeiro que sonhava pássaros”, Mia Couto

  • Foto do escritor: Débora Pluvie
    Débora Pluvie
  • 15 de fev. de 2021
  • 5 min de leitura

“Os senhores receavam as suas próprias suspeições – teria aquele negro direito a ingressar um mundo onde eles (os colonos) careciam de acesso?”


Este conto faz parte do livro “Cada homem é uma raça”, publicado em 1998 por Mia Couto – brilhante escritor Moçambicano.


Em primeira análise, preciso gritar pro mundo que fiquei arrepiada a cada palavra do texto – tão curtinho e tão avassalador.


Sobre a ideologia da obra como um todo, de algum modo, cada indivíduo tem sua própria raça, em virtude de tamanha fragmentação. Além disso, o livro lida com questões coloniais a partir do ponto de vista da coletividade; temos, assim, um narrador onisciente que gradativamente vai dando as pistas para os caminhos dos enredos.


Acerca de O embondeiro que sonhava pássaros, é inegável que existe uma espécie de recriação de uma lenda africana – a dos baobás.



Esta árvore, além de ser o símbolo nacional de Madagascar e o emblema do Senegal, possui uma simbologia religiosa muito forte para diversas tribos daquele continente. A ideia é que quem faz mal à planta, recebe uma vingança. Guarde essa informação.


Quanto ao aspecto histórico, sabemos que em um contexto de expansões marítimas, o objetivo de Portugal era chegar até as Índias, e como naquele tempo os navegantes não tinham o conhecimento do mundo, digo, geográfico, foram pouco a pouco conquistando a África; mantendo relações comerciais em um primeiro momento, com os reis e líderes africanos e após chegarem às Indias, os lusitanos deram início ao processo de colonização de alguns espaços africanos, criando, então, uma relação colonial, de exploração, e não só mercantil como no início. Sobre esse aspecto histórico, escravidão versus protagonismo do escravizado, o diplomata, escritor e poeta Alberto da Costa e Silva fala sobre as diferenças entre escravidões Africanas e Brasileiras. Vou deixar esse link maneiríssimo aqui no fim do post.


Nesse contexto, a população lusófona (gente que fala a Língua Portuguesa) hoje conta com meio milhão de falantes em Cabo Verde, 200 mil em São Tomé e Príncipe, 2 milhões em Guiné Bissau, 22 milhões em Moçambique, 1,1 milhão no Timor Leste e 17 milhões em Angola. Somando esses números ao Brasil (192 milhões) e a Portugal (11 milhões), somos a 5ª língua mais falada no mundo. Assim, é impossível não pensar que à medida que aumenta o número de pessoas que falam a língua portuguesa no mundo, especialistas em Linguística e Literatura lançam instigantes reflexões acerca do nosso idioma – e, mais que isso: da nossa cultura Literária.


Considerando que é por intermédio do nosso idioma que nossa identidade enquanto Nação se configura, que essa identidade se revela na percepção da língua portuguesa como herança, como memória e como criação e que cada um desses aspectos pode ser observado não só dentro de nós próprios como no âmbito coletivo, nacional e global, Mia Couto coloca Moçambique no centro do mundo em seu conto.




Isto posto, vamos ao autor. Mia Couto nasceu na Beira, em Moçambique, em 1955. Branco, estudou medicina antes de se formar em Biologia. Em 1999, recebeu o prêmio Virgílio Ferreira pelo conjunto de sua obra; em 2007, o prêmio União Latina de Literaturas Românicas; seu romance Terra Sonâmbula foi considerado um dos 10 melhores livros africanos do século XX e às vezes resolve dar uma pinta na UFRJ.


“Todas as manhãs passara no bairro dos brancos”

O embondeiro que sonhava pássaros, sinteticamente nos conta um enredo que apresenta um vendedor de pássaros, negro, descalço, num bairro de brancos. E aí que conseguimos observar já no iniciozinho do texto um teor segregacionista. Isso, porque existe o bairro dos ricos e o bairro dos pobres.


É interessante olharmos também para o fato desse vendedor não ter um nome específico; o narrador nos diz “O vendedor de pássaros não tinha sequer o abrigo de um nome. Chamavam-lhe o passarinheiro.” Assim, não existe para ele uma identidade civil, o que transgride uma norma social já calcificada. Ou seja, aquele homem era somente conhecido pelo seu ofício. Ofício esse que começa a gerar incomodo nos moradores daquele bairro e uma alegria descomunal nas crianças que iam até ele admirar a beleza das aves – em especial uma criança, Tiago.

Em um dado momento Tiago descobre que o vendedor morava dentro de uma árvore baobá.

“-Foste a casa dele? Mas esse vagabundo tem casa? A residência dele era um embondeiro, o vago buraco no tronco. Tiago contava: aquela era uma árvore muito sagrada, Deus a plantara de cabeça pra baixo.

-Vejam só o que o preto anda a meter na cabeça desta criança.

O pai se dirigia à esposa, encomendando-lhe as culpas.

O menino prosseguia: é verdade, mãe; Aquela árvore é capaz de grandes tristezas. Os mais velhos dizem que o embondeiro, em desespero, se suicida por via das chamas. Sem ninguém pôr fogo. É verdade, mãe!”

Acontece que tamanha afronta ao espaço dos colonos – e podemos pensar que mesmo em tempos de pós-colonialismo, esse ainda consegue exercer qualquer influência de poder; alguns especialistas chamam isso de neocolonialismo – existe uma reunião dos poderosos na casa de Tiago e o menino ouve por trás da porta que o grupo planejava matar o velho passarinheiro. Tiago sai correndo para avisar seu amigo e isso pouco o preocupa. Os homens chegam, e

“O vendedeiro se guardava mais em lenda que em realidade. E porquê vestisse o terno? Explicou: ele é que natural, rebento daquela terra. Devia saber receber os visitantes. Lhe cumprimentou com respeito, deveres de anfitrião.

-Agora você vai, volta a sua casa.

Tiago levantou-se, difícil de partir. Olhou a enorme árvore, conforme lhe pedisse proteção.

-Está a ver a flor? – perguntou o velho.

E lembrou a lenda. Aquela flor era a moradia dos espíritos.”

O menino, em seu desespero fica escondido, o velho é espancado e lá deixa uma gaita. Quando o silêncio já habitava a árvore, à procura do amigo, Tiago gritou pelo velho e responderam os pássaros; assim, em mais uma tentativa, toca a gaita.

“Entrou no tronco, guardou-se na distância de um tempo. Valia a pena esperar pelo velho? No certo ele se esfumara, fugido dos brancos. No enquanto, ele voltou a soprar a muska. Foi-se embalando no ritmo, deixando de escutar o mundo lá fora.”

E aí para tudo porque entramos num mérito extremamente pertinente a qualquer literatura de qualidade – a musicalidade. A música é mais imediata que a fala; o som modula dos afetos. Você já reparou como esse elemento tem o poder de agregar pessoas e transmitir o que não conseguiria apenas com a fala? Já reparou como num festival tipo Rock in Rio, milhares de pessoas que não se conhecem utilizam uma só voz, em união, por conta de uma música?

“Se guardasse a devida atenção, ele teria notado a chegada das muitas vozes – O sacana do preto está dentro da árvore. Os passos da vingança cercavam o embondeiro, pisando as flores (lembram do elemento sagrado?).

(...)

As tochas se chegaram ao tronco, o fogo namorou as velhas cascas.

Dentro, o menino desatara um sonho: seus cabelo se figuravam pequenitas folhas, pernas e braços se madeiravam. Os dedos, lenhosos, minhocavam a terra. O menino transitava de reino: arvorejado, em estado de consentida impossibilidade. E do sonâmbulo embondeiro subiam as mães do passarinheiro. Tocavam as flores, as corolas se envolucravam: nasciam espantosos pássaros e soltavam-se petalados. De onde chegavam elas, excedendo a lonjura do sonho? Foi quando Tiago sentiu a ferida das labaredas, a sedução da cinza. Então, o menino, aprendiz de seiva, se emigrou inteiro para suas recentes raízes.”

Observamos, enfim, nesse último parágrafo um ritual de transmutação daquele menino colono e, por ser menino carrega a questão do futuro, que se integra àquele universo que tanto admirava.

Em termos de relevância, o texto representa um pedacinho muito pequininito da discussão que precisa acontecer.


Por hoje é isso.


Quaisquer dúvidas, mandem um direct no instagram @pluviedebora


Bjs.


LINK: https://www.youtube.com/watch?v=vfxZ4UWeYMQ

 
 
 

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