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[ENEM] INTERPRETAÇÃO DE UM POEMA ROMÂNTICO

  • Foto do escritor: Débora Pluvie
    Débora Pluvie
  • 15 de fev. de 2021
  • 4 min de leitura

Leia a seguir um dos mais famosos poemas do tempo Romântico. No texto, o contraponto do trágico e do cômico, do sério e do paródico constitui a chave de Ideias íntimas. Aqui, a duplicidade não se verifica no cotejo frente a duas poesias, mas se surpreende em operação no interior do mesmo poema. Em Ideias íntimas, o poeta elege o espaço imediato e prosaico do seu quarto como representação de um “eu” tumultuado por conflitos e contradições.

Ideias íntimas

La chaise où je m'assieds, la natte où je me couche, La table ou je t'écris.......................... ................................................ Mes gros souliers ferrés, mon baton, mon chapeau, Mês libres pêle-mêle entassés sur leur planche. ................................................ De cet espace étroit sont tout l'ameublement.

LAMARTINE, Jocelyn

Observe o que o autor inicia o poema citando um dos grandes românticos franceses, Jocelyn Lamartine. Lembre-se que no século XIX, Paris era considerada a capital cultural do mundo.

I

Ossian*.— o bardo é triste como a sombra Que seus cantos povoa. O Lamartine É monótono e belo como a noite, Como a lua no mar e o som das ondas...

*Ossian é o narrador e suposto autor de um ciclo de poemas épicos publicados pelo poeta escocês James Macpherson desde 1760

Mas pranteia uma eterna monodia, Tem na lira do gênio uma só corda, — Fibra de amor e Deus que um sopro agita! Se desmaia de amor... a Deus se volta, Se pranteia por Deus... de amor suspira.** Basta de Shakespeare. Vem tu agora, Fantástico alemão***, poeta ardente Que ilumina o clarão das gotas pálidas Do nobre Johannisberg! Nos teus romances Meu coração deleita-se... Contudo, Parece-me que vou perdendo o gosto, Vou ficando blasé: passeio os dias Pelo meu corredor, sem companheiro, Sem ler, nem poetar... Vivo fumando. Minha casa não tem menores névoas Que as deste céu d'inverno... Solitário (Passo as noites aqui e os dias longos... Dei-me agora ao charuto em corpo e alma: Debalde ali de um canto um beijo implora, Como a beleza que o Sultão despreza, Meu cachimbo alemão abandonado! Não passeio a cavalo e não namoro, Odeio o lasquenet... Palavra d'honra! Se assim me continuam por dois meses Os diabos azuis nos frouxos membros, Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.)****

** Reduz Lamartine a isso.

*** Referência a Goethe.

**** Diálogo crítico. Veja que o sujeito poético comenta sobre a Praia Vermelha – esse era um antigo hospício no Rio de Janeiro.

(...)

Reina a desordem pela sala antiga: Desce a teia de aranha as bambinelas À estante pulvurenta. A roupa, os livros

Sobre as poucas cadeiras se confundem. Marca a folha do Faust um colarinho E Alfredo de Musset encobre, às vezes De Guerreiro, ou Valasco, um texto obscuro. Como outrora do mundo os elementos Pela treva jogando cambalhotas, Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!*****

*****Alusão à expressão Fiat Lux. Termologia latina que diz respeito à passagem bíblica, em Gênesis 1:3, Faça luz. Veja que dessublimizar o sagrado e sacralizar o corriqueiro é duas vezes subverter o espaço poético. Nesse contexto, a desordem traz o progresso – faz com que o sujeito poético veja além. Assim, ao justapor o sublime e o rasteiro, Alvares de Azevedo conscientemente transgride o código dominante na poesia da época.

(...)

Junto a meu leito, com as mãos unidas, Olhos fitos no céu, cabelos soltos, Pálida sombra de mulher formosa Entre nuvens azuis pranteia orando. É um retrato talvez. Naquele seio Porventura sonhei douradas noites, Talvez sonhando desatei sorrindo Alguma vez nos ombros perfumados Esses cabelos negros e em delíquio Nos lábios dela suspirei tremendo, Foi-se a minha visão... E resta agora Aquele vaga sombra na parede — Fantasma de carvão e pó cerúleo! —

Tão vaga, tão extinta e fumacenta Como de um sonho o recordar incerto.

VII

Em frente do meu leito, em negro quadro, A minha amante dorme. É uma estampa De bela adormecida. A rósea face Parece em visos de um amor lascivo De fogos vagabundos acender-se... E como a nívea mão recata o seio... Oh! quantas vezes, ideal mimoso, Não encheste minh'alma de ventura, Quando louco, sedento e arquejante Meus tristes lábios imprimi ardentes No poento vidro que te guarda o sono!

XIV

Parece que chorei... Sinto na face Uma perdida lágrima rolando... Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem, Derrama no meu copo as gotas últimas Dessa garrafa negra... Eia! bebamos! És o sangue do gênio, o puro néctar Que as almas de poeta diviniza, O condão que abre o mundo das magias! Vem, fogoso Cognac! É só contigo****** Que sinto-me viver. Inda palpito, Quando os eflúvios dessas gotas áureas

******No contexto do poema, que focaliza o universo cultural e artístico de Azevedo, o verso adquire função metalinguística porque auto-caracteriza o poema como ponto de encontro de registro estético. Grandes poetas convivem aqui com garrafas de conhaque, retratos de pais que jazem em meio a teias de aranhas – ou seja, um ambiente estritamente mórbido. Essa desordem é, por outro lado, altamente atrativa e criativa dado que submete as afinidades eletivas do poeta a uma constante vigilância crítica que as vê e as desconstrói.

 
 
 

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