PONTUAÇÃO COMO RECURSO EXPRESSIVO
- Débora Pluvie
- 15 de fev. de 2021
- 6 min de leitura

TEXTO 1
Ouvir estrelas
Ora, (direis) ouvir estrelas! Certo perdeste o senso! E eu vos direi, no entanto, Que, para ouvi-las, muita vez desperto E abro as janelas, pálido de espanto... E conversamos toda a noite, enquanto A via láctea, como um pálio aberto, Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto, Inda as procuro pelo céu deserto. Direis agora: "Tresloucado amigo! Que conversas com ela? Que sentido Tem o que dizem, quando estão contigo?" E eu vos direi: "Amai para entendê-las! Pois só quem ama pode ter ouvido Capaz de ouvir e de entender estrelas."
Olavo Bilac
TEXTO 2
O velho diálogo de Adão e Eva1
Brás Cubas . . . ? Virgília . . . . . Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Virgília . . . . . ! Brás Cubas . . . . . . Virgília . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Brás Cubas . . . . . . . . . Virgília . . . . Brás Cubas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! . . . . ! . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . ! Virgília . . . . . . . . . . . . . ? Brás Cubas . . . . . ! Virgília . . . . . !
Memórias póstumas de Brás Cubas, Machado de Assis
TEXTO 3
O passado anda atrás de nós
como os detetives os cobradores os ladrões
o futuro anda na frente
como as crianças os guias de montanha
os maratonistas melhores
do que nós
salvo engano o futuro não se imprime
como o passado nas pedras nos móveis no rosto
das pessoas que conhecemos
o passado ao contrário dos gatos
não se limpa a si mesmo
aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem
pense em como do lodo primeiro surgiu esta poltrona este livro
este besouro este vulcão este despenhadeiro
à frente de nós à frente deles
corre o cão
ANA MARTINS MARQUES
O livro das semelhanças. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
(Uerj 2017) aos cães domesticados se ensina
a andar sempre atrás do dono
mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem (v. 12-14)
Nesses versos, sugere-se uma ideia a respeito da relação entre cães e seres humanos.
Essa ideia, no verso destacado, recebe da poeta a seguinte avaliação:
a) adesão
b) negação
c) proibição
d) permissão
Letra B.A ideia sugerida a respeito da relação entre cães e seres humanos é a de posse. Essa ideia é negada no verso 14, tendo em vista o uso do advérbio “aparentemente”: “mas os cães o passado só aparentemente nos pertencem”. Depreende-se assim que, apesar da aparência, os cães não nos pertencem, como o passado também não.
TEXTO 4
Amanhã apresentarei a minha demissão, Que eu não aceitarei. O Sr. José olhou surpreendido, Não aceitará, Não senhor, não aceitarei, Porquê, se posso perguntar, Pode, uma vez que estou prestes a tornar-me em cúmplice das suas irregulares acções, Não compreendo. O conservador pegou no processo da mulher desconhecida, depois disse, Já vai compreender, antes, porém, conte-me o que se passou no cemitério, a sua narração pára na conversa que teve com o auxiliar de escrita de lá, Levaria muito tempo a dizer, Em poucas palavras, para eu ficar com o quadro completo, Atravessei a pé o Cemitério Geral até ao talhão dos suicidas, dormi debaixo duma oliveira, na manhã seguinte, quando acordei, estava no meio dum rebanho de ovelhas, e depois soube que o pastor se entretém a trocar os números das campas antes de serem colocadas as pedras tumulares, Porquê, É difícil de explicar, anda tudo à volta de saber onde se encontram realmente as pessoas que procuramos, ele acha que nunca saberemos, Como aquela a quem tem chamado a mulher desconhecida, Sim senhor, Que fez hoje, Fui ao colégio onde ela tinha sido professora, fui à casa onde viveu, Descobriu alguma coisa, Não senhor, e achei que não queria descobrir.
Todos os nomes, Saramago
TEXTO 5
, estando tão ocupada, viera das compras de casa que a empregada fizera às pressas porque cada vez mais matava serviço, embora só viesse para deixar almoço e jantar prontos, dera vários telefonemas tomando providências, inclusive um dificílimo para chamar o bombeiro de encanamentos de água, fora à cozinha para arrumar as compras e dispor na fruteira as maças que eram a sua melhor comida, embora não soubesse enfeitar uma fruteira, mas Ulisses acenara-lhe com a possibilidade futura de por exemplo embelezar uma fruteira, viu o que a empregada deixara para jantar antes de ir embora, pois o almoço estivera péssimo, enquanto notara que o terraço pequeno que era privilégio de seu apartamento por ser térreo precisava ser lavado, recebera um telefonema convidando-a para um coquetel de caridade em benefício de alguma coisa que ela não entendeu totalmente mas que se referia ao seu curso primário, graças a Deus que estava em férias, fora ao guarda-roupa escolher que vestido usaria para se tornar extremamente atraente para o encontro com Ulisses que já lhe dissera que ela não tinha bom-gosto para se vestir, lembrou-se de que sendo sábado ele teria mais tempo porque não dava nesse dia as aulas de férias na Universidade, pensou no que ele estava se transformando para ela, no que ele parecia querer que ela soubesse, supôs que ele queria ensinar-lhe a viver sem dor apenas, ele dissera uma vez que queria que ela, ao lhe perguntarem seu nome, não respondesse "Lóri" mas que pudesse responder "meu nome é eu", pois teu nome, dissera ele, é um eu, perguntou-se se o vestido branco e preto serviria, então do ventre mesmo, como um estremecer longínquo de terra que mal se soubesse ser sinal de terremoto, do útero, do coração contraído veio o tremor gigantesco duma forte dor abalada, do corpo todo o abalo — e em sutis caretas de rosto e de corpo afinal com a dificuldade de um petróleo rasgando a terra — veio afinal o grande choro seco, choro mudo sem som algum até para ela mesma, aquele que ela não havia adivinhado, aquele que não quisera jamais e não previra — sacudida como a árvore forte que é mais profundamente abalada que a árvore frágil — afinal rebentados canos e veias, então sentou-se para descansar e em breve fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma veia não se abrira e faz de conta que dela não estava em silêncio alvíssimo escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte mas isso fazia de conta que estava mesmo de verdade, precisava no meio do faz de conta falar a verdade de pedra opaca para que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante, faz de conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de saudade, faz de conta que estava deitada na palma transparente da mão de Deus, não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era sábia bastante para desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas só para olhar a cor da lua pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o que tinha não era faz de conta, faz de conta que se descontraía o peito e uma luz douradíssima e leve a guiava por uma floresta de açudes mudos e de tranqüilas mortalidades, faz de conta que ela não era lunar, faz de conta que ela não estava chorando por dentro — pois agora mansamente, embora de olhos secos, o coração estava molhado; ela saíra agora da voracidade de viver. Lembrou-se de escrever a Ulisses contando o que se passara, mas nada se passara dizível em palavras escritas ou faladas, era bom aquele sistema que Ulisses inventara: o que não soubesse ou não pudesse dizer, escreveria e lhe daria o papel mudamente — mas dessa vez não havia sequer o que contar.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Clarice Lispector
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