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[UERJ 2021] Interlocuções com "1984", de George Orwell

  • Foto do escritor: Débora Pluvie
    Débora Pluvie
  • 28 de fev. de 2021
  • 18 min de leitura

Pessoal,


tenho recebido diferentes mensagens sobre possíveis intertextualidades literárias para a prova de redação da UERJ 2021, diante da obra "1984". Nesse sentido, elaborei uma lista bacana demais pra você que fará esse exame, de modo que sua escrita esteja repleta de repertório.


Atenção: jamais cite uma obra sobre a qual você não tenha domínio. Leia muito e leia sempre!


Isso posto, vamos aos livros:



Crime e Castigo, Dostoievski


“Dor e sofrimento são sempre inevitáveis para uma grande inteligência e um coração profundo.”


Crime e Castigo, Dostoievski, 1866


O realismo psicológico é a descrição, na Literatura, de traços de personalidade mais íntimos de uma personagem, destacando seus pensamentos conscientes pela via das motivações inconscientes.

Mergulhar na psiquê de uma personagem dessa maneira marcou um afastamento radical da ficção romântica. Em sua obra-prima, "Crime e Castigo”, o russo Fiódor Dostoiévski apresenta ao lei seu anti-herói, o estudante Rodion Románovich Raskólnikov, também chamado de Rodya ou Rodka pelas poucas pessoas que o amam. O autor disseca ali as motivações psicológicas desse personagem de uma forma que prenuncia a obra de Sigmund Freud e as de outros psicanalistas.


A obra começa numa noite quente do início de julho em São Petesburgo, na Rússia. O protagonista, um jovem malvestido, sai de seu minúsculo quarto de sótão, despista sua senhoria e escapa para o calor e o mau cheiro da cidade. Ele está adoentado e também sofre algum tipo de desarticulação mental, murmurando coisas para si mesmo. Está faminto, busca pela sobrevivência.


Roda vai parar na casa de Alíona Ivanovna, uma penhorista local para penhorar seu relógio, outrora de seu pai, e, abatido pela pobreza, é forçado a aceitar uma soma irrisória pelo objeto. Ao deixar o edifício, um pensamento lhe ocorre. O domínio psicológico do autor expõe por completo as deliberações íntimas do jovem e suas maquinações sobre como agir para cometer um crime, matando a penhorista. Dostoiévski conduz o leitor de forma tangível e empática diante da mente de Rodka - a mente de um assassino. Mais à frente, o personagem sonha - o que simboliza o prenúncio do crime que está prestes a cometer, mas também serve como referência a sua dessensibilização e à perda do livre-arbítrio .


O assassinato de Alíona Ivanovna é descrito com uma realidade visceral impressionante e o autor apresenta vários motivos potenciais para o crime. O mais relevante é a percepção que o protagonista tem de si mesmo como “super-homem”- um ser superior, acima da lei, que tem nojo da sociedade e do comportamento insensato das hordas de pessoas comuns. Em certo momento, Raskólnikov assinala que todos os grandes homens são criminosos, transgressores de leis antiquadas e estão dispostos a derramar sangue se isso servir à sua causa.

1. Pobreza: ele sente que precisa furtar o dinheiro da velha senhora para sobreviver.


2.Justiça: acredita que está fazendo um favor à sociedade ao eliminar a velha senhora má e ao usar seus bens para beneficiar outras pessoas.


3. Poder: ele ultrapassa limites para ver se pode se tornar um “super-homem”, além da culpa e acima do bem e do mal.

4. Vingança deslocada: ressente-se por sua mão ter restringido seu desenvolvimento psicológico. Associa a velha senhora à mãe e, assim, mata-a num ato de vingança inconsciente por transferência.


5. Sem SOCIEDADE: ele não tem crença ou qualquer estrutura moral e espera que durante o castigo encontrará a redenção.


6. Loucura: sobrecarregados por sua própria agitação anterior, ele mata com o objetivo de fazer algo para recuperar o controle de si mesmo.


Considera-se que a exposição do autor acerca do tema reflete sua angústia em relação às mudanças que ele próprio observou na sociedade russa: a ascensão do materialismo, o declínio da velha ordem e a popularidade das filosofias individualistas e niilistas.


Diante da obra russa e do texto de Orwell, podemos pensar uma temática que aborde “Como um governo totalitário constrói sujeitos distantes de suas faculdades mentais?"

Após o assassinato, acompanhamos Raskólnikov pelas ruas de São Petesburgo em seu desespero e delírio fervoroso. Seriam a confissão e a força da lei preferíveis à tortura de sua consciência?


O conto da aia, Margaret Atwood



“Estranho lembrar como costumávamos pensar, como se tudo estivesse disponível para nós, como se não houvesse quaisquer contingências, quaisquer limites; como se fôssemos livres para moldar e remoldar para sempre os perímetros sempre em expansão de nossas vidas.”


O Conto da aia, Margaret Atwood, 1985


Versão distópica de um futuro não muito distante, O conto da aia, da canadense Margaret Atwood retrata uma versão dos Estados Unidos na qual o estabelecimento de uma teocracia supostamente cristã levou à perda das liberdades das mulheres e ausência da liberdade de expressão - inclusive, científica. Casta e classe tornaram-se princípios organizacionais da sociedade permitindo que Atwood comente sobre desigualdades dos tempos atuais.


A narradora é Offred, uma “aia" - concubina para fins reprodutivos em uma era repleta de doenças sexualmente transmissíveis. Seu comandante desenvolve sentimentos por ela e lhe dá privilégios, além de acesso a alguns segredos do regime. Mais tarde, ela se envolve em um crescente movimento de resistência. O poder dessa controversa obra de ficção vem de sua crítica devastadora ao patriarcalismo exagerado.



A revolução dos bichos, George Orwell


"Doze vozes gritavam, cheias de ódio, e eram todas iguais. Não havia dúvida, agora, quanto ao que sucedera à fisionomia dos porcos. As criaturas de fora olhavam de um porco para um homem, de um homem para um porco e de um porco para um homem outra vez; mas já era impossível distinguir quem era homem, quem era porco."


A revolução dos bichos, George Orwell, 1945


A obra, também de Orwell, mostra que a alegoria satírica pode ser tão eficiente quanto o realismo em revelar as mazelas do totalitarismo. O autor, aqui, utiliza uma história de animais falantes para dramatizar as políticas comunistas da Revolução Russa e do Stalinismo.


Sentindo chegar a sua hora, Major, um velho porco, reúne os animais da fazenda para partilhar um sonho: serem governados por eles próprios, os animais, sem a submissão e exploração do homem. Ensinou-lhes uma antiga canção, Bichos da Inglaterra (Beasts of England), que resume a filosofia do Animalismo, exaltando a igualdade entre eles e os tempos prósperos que estavam por vir, deixando os demais animais em êxtase com as possibilidades.


O idoso Major (vulgo Casca Grossa) faleceu três dias depois, tendo tomado a frente os astutos e jovens porcos Bola-de-Neve e Napoleão, que passaram a reunir-se clandestinamente a fim de traçar as estratégias da revolução. Certo dia, Sr. Jones, então proprietário da fazenda, descuidou-se com a alimentação dos animais, fato este que se tornou a gota da água para aqueles bichos. Sob o comando dos inteligentes e letrados porcos, os animais expulsaram os humanos da propriedade e passaram a chamar a Quinta Manor de Quinta dos Animais / Granja ou Fazenda dos Bichos, e aprenderam os Sete Mandamentos, que, a princípio, ganhavam a seguinte forma:


1. Qualquer coisa que ande sobre duas pernas é inimigo.

2. Qualquer coisa que ande sobre quatro patas, ou tenha asas, é amigo.

3. Nenhum animal usará roupas.

4. Nenhum animal dormirá em cama.

5. Nenhum animal beberá álcool.

6. Nenhum animal matará outro animal.

7. Todos os animais são iguais.


Para os animais menos inteligentes, os porcos resumiram os mandamentos apenas na máxima "Quatro pernas bom, duas pernas mau" que passou a ser repetido constantemente pelas ovelhas. Após a primeira invasão dos humanos, na tentativa


frustrada de retomar a fazenda, Bola-de-Neve luta com bravura, dedica todo o seu tempo ao aprimoramento da fazenda e da qualidade de vida de todos, mas, mesmo assim, Napoleão expulsa-o do território, alegando sérias acusações contra o antigo companheiro.


Acusações estas que se prolongam durante toda história, mesmo após o desaparecimento de Bola-de-Neve, na tentativa de encobrir algo ou mesmo ter alguma explicação para dar aos animais sobre catástrofes, criando-se um mito em torno do porco que, a partir dali, é considerado um traidor.


Napoleão apodera-se da ideia de Bola-de-Neve de construir um moinho de vento para gerar energia (mesmo tendo feito duras críticas à imaginação do companheiro), e dá início à sua construção. Algum tempo depois, os porcos começam a negociar com os agricultores da região, recusando a existência de uma resolução de não contactar com os humanos, apontando essa ideia como mais uma invenção de Bola-de-Neve. Os porcos passam ainda a viver na antiga casa de Sr. Jones e começam a modificar os mandamentos que estavam na porta do celeiro:


  • Nenhum animal dormirá em cama com lençóis.

  • Nenhum animal beberá álcool em excesso.

  • Nenhum animal matará outro animal sem motivo.

  • Todos os animais são iguais mas alguns são mais iguais que os outros.



O hino da Revolução é banido, já que a sociedade ideal descrita, segundo Napoleão, já teria sido atingida sob o seu comando. Napoleão é declarado líder por unanimidade. As condições de trabalho degradam-se, os animais sofrem um novo ataque humano e já não se lembram se na época em que estavam submissos ao Sr. Jones era mesmo pior, mas lembravam-se da liberdade proclamada, e eram sempre lembrados por sábios discursos suínos, principalmente os proferidos por Garganta, um porco com especial capacidade persuasiva. Napoleão, os outros porcos e os agricultores da vizinhança celebram, em conjunto, a produtividade da Quinta dos Animais.


Os outros animais trabalham arduamente em troca de míseras rações. Assiste-se assim a um escárnio grotesco da sociedade humana.


O slogan das ovelhas fora modificado ligeiramente, “Quatro pernas bom, duas pernas melhor!”, pois agora os porcos andavam sobre as duas patas traseiras. No final, os animais, ao olhar para dentro da casa antes pertencente a Jones e onde os porcos agora vivem em considerável luxo em relação aos demais animais, vêem Napoleão e outros suínos jogando carteado com


Frederick e Pilkington, senhores das granjas vizinhas, e celebrando a prosperidade económica que os seus acordos proporcionam às suas quintas. Numa visão confusa, os animais já não conseguem distinguir os porcos dos homens.


O idealismo inicial dá lugar à fraqueza “humana”, e a hipocrisia se instala. Divertido e leve, trata-se de um dos livros políticos mais influentes do século XX.


Ópio e Memória, Paul Celan


Está na hora da pedra se dispor a florescer,

da inquietação disparar o coração.

Chegou a hora da hora.

Está na hora.


“Ópio e Memória”, Paul Celan, 1952


Na Segunda Guerra Mundial, depois que o campo de concentração de Auschwitz foi libertado, em 27 de janeiro de 1945, e a gravidade das atrocidades cometidas no Holocausto judeu se tornou conhecida, algumas pessoas consideraram que os limites convencionais da Literatura não dariam conta de descrever acontecimentos tão horríveis. Para os autores judeus, todavia, qualquer forma de expressão era essencial.



“ A morte é um dos mestres da Alemanha”.


O poeta Paul Celan (1920-1970) nasceu como Paul Antschel numa família judia romena falante de alemão. Sobreviveu ao gueto e a um campo de concentração para tornar-se, sob o pseudônimo Celan, um importante poeta de língua alemã do pós-guerra. Contudo, assombrado por suas experiências, acabou cometendo suicídio.


“Ópio e Memória”, que contem mais de cinquenta poemas, é a segunda coletânea de Celan, que firmou sua reputacao. Inclui seu poema mais famoso, “Todesfuge” (Fuga da morte). Escrito em ritmo musical, o poema apresenta a Morte, vestida na pele do comandante do campo, que força os prisioneiros a dançarem diante de suas próprias covas.


Lembrei-me, diante da leitura do poema, do trecho de “1984” quando o autor afirma de modo a ostentar a expressão de tranquilo otimismo que convinha ter no rosto sempre que encarava a teletela. Vemos em Winston não só um sujeito atormentado, mas enebriado pelo ópio de seu tempo – o duplipensar. Desse modo, enxergamos indivíduos que passivos intelectualmente e, ate fisicamente, estão perante um microcosmos de abstenção de identidade e diluição da dignidade.


Nesse sentido, a banca poderia nos abordar: “Quais são os impactos socioemocionais no indivíduo em contextos como os de Winston?


A coletânea de Paul Celan também inclui “Corona” (Sim! Por incrível que pareça esse é o nome do poema), outro de seus textos mais conhecidos, interpretado como uma reflexão sobre a tentativa de alcançar o amor verdadeiro sem que ele se torne uma fuga da verdade do mundo.

Em várias partes de “Ópio e Memória”, imagens apavorantes do Holocausto são recorrentes: cinzas, cabelo, fumaça, mofo, amargura, sombras, morte, memória e esquecimento. Ao explorar esses temas, Celan expressa a herança deplorável deixada pela exterminação organizada em massa.


Doutor Jivago, Boris Pasternak


"Não gosto dos justos, dos que nunca caíram, que não recuaram. A virtude deles é morta, sem valor. A beleza da vida não foi revelada para eles."



Doutor Jivago, Boris Pasternak, 1957



O romance aclamado internacionalmente do russo Pasternak é uma provocativa investigação do Partido Comunista russo entre a Revolução de 1905 e a Primeira Guerra Mundial. Teve de ser publicado na Itália por causa da censura do governo russo, que também removeu o Prêmio Nobel concedido a Pasternak.


A história é contada por meio de múltiplas personagens – tendo como centro Yuri Jivago – enquanto elas se adaptam à nova realidade política de seu país. A obra trata das tentativas equivocadas do regime de impor conformidade e de sua pobre interpretação dos ideais socialistas, assim como das lutas das personagens em suas tentativas de tolerar e superar a alienação, a solidão e a frieza da Rússia comunista.


Falando em alienação, isso te lembra alguma coisa? Imagine que a banca peça “Como um regime político totalitário colabora para a construção da alienação? O que você escreveria?

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A cidade e os cães, Mario Vargas Llosa



[...] – Você nunca se meteu numa briga, não é? – Só uma vez – diz o Escravo. – Aqui? – Não, antes.

– É por isso que está ferrado – diz Alberto. – Todo mundo sabe que você tem medo. Precisa cair no pau de vez em quando para te respeitarem. Se não, você está fodido na vida. – Não vou ser militar.

– Nem eu. Mas aqui você é militar, queira ou não. E o que importa no Exército é ser bem macho, ter colhões de aço, entende? Ou você come ou comem você, não tem saída. E não quero que me comam.


A cidade e os cães, Mario Vargas Llosa, 1963


A escrita, literária ou não, nos países da América Latina, sempre foi um instrumento importante de intervenção na realidade social. Em uma história de totalitarismos, ditaduras e censuras, escrever se tornou um ato de resistência. Assim como nos jornais, na academia e nas ruas, a arte também se configurou como espaço para mostrar e discutir os desajustes e injustiças da sociedade.



A literatura latino-americana tem uma tradição de vínculo com a realidade política, principalmente nas épocas de ditadura militar. É nesse contexto que emerge a literatura de Mario Vargas Llosa. Em seus primeiros livros é constante a problematização do poderio militar e das consequências que a falta de liberdade trouxe para a sociedade peruana como um todo e para os indivíduos – especialmente os escritores e intelectuais – marcados pela interdição da escolha e da livre expressão.



Seu primeiro livro, A cidade e os cães, publicado em 1962, já apresenta as discussões sobre liberdade que tanto serão exploradas em seus escritos literários e ensaios políticos. Ambientando entre o Colégio Militar Leôncio Prado – onde o autor estudou – e as ruas da cidade de Lima dos anos 1950, o romance mostra o cotidiano dos protagonistas no colégio e o que seria seu processo de transformação em homens. Em seus primeiros dias, as crianças passam por um batismo brutal feito pelos rapazes mais velhos, com rituais de humilhação e mortificação. São situações que vão desde a violência física e psicológica até a violência sexual.


O contexto hostil da escola militar é um ambiente que reflete a sociedade peruana da época. A hipocrisia do discurso militar é denunciado quando o ambiente militar, que prega uma moral civilizada e defensora da Pátria, da Família e da SOCIEDADE, se configura como locus de práticas corruptas e mesquinhas. Da mesma forma que as autoridades do colégio oprimem e castigam os rapazes na tentativa de transformá-los em homens, os estudantes mais velhos transferem essa aprendizagem sádica para os estudantes mais novos, incorporando um código de guerra constante, mesmo estando fora do campo de batalha.



No desenrolar das ações, os estudantes passam por vários conflitos morais que sempre se relacionam com o respeito ao princípio de virilidade que permeia e limita todas as escolhas morais dos estudantes. Todas as ações são observadas e julgadas tendo em vista se são caracterizadas como masculinas ou não. Provar sua condição de “verdadeiro homem” é a justificativa para todos os atos de covardia e de violência para com o outro.

Apesar da obediência a esse princípio, a ânsia de liberdade se estende a todos os tipos de opressão criados pelo ideal de masculinidade. Essa opressão se materializa na família, com o comportamento opressor do pai para com a mãe e para com o filho; na escola militar, que prega uma obediência cega à autoridade, mesmo que essa autoridade seja corrupta; e nas relações entre os estudantes, que reproduzem os abusos sofridos pela figura do pai e pela figura da autoridade militar.



Todas essas relações de poder presentes no livro de Vargas Llosa têm um aspecto em comum: a autoridade é sempre masculina e exerce seu poder através da virilidade. Mais ainda, a infância e a adolescência dos rapazes se tornam uma luta constante e obrigatória para estar na situação de autoridade, de dominância. Dessa forma, a opressão sofrida pelos personagens do livro não é apenas em relação ao contexto do regime totalitário no Peru e às faltas de liberdades civis. O que os oprime mais diretamente é o código viril que devem obedecer, sendo obrigados a receber e praticar atos de violência para a manutenção de sua masculinidade. O colégio militar é o ápice da virilidade e os personagens do romance não estão lá por acaso.


Observamos isso através de como três dos protagonistas entraram no colégio militar: o primeiro, Ricardo Arana, a fim de se livrar dos abusos do pai, sugeriu que fosse matriculado em um colégio interno. O pai escolhe, então, o colégio militar para “transformá-lo em homem”. O segundo, Alberto, filho de família burguesa, teve notas baixas na escola e o pai, a fim de defender a honra dos homens da família que sempre ficavam em primeiro lugar, colocou o filho na escola militar para que “aprendesse a ser homem”. O terceiro, Jaguar, era um rapaz de baixa condição econômica que roubava com rapazes mais velhos para conseguir dinheiro. Sabia brigar e frequentava prostíbulos. Em um dos roubos, um dos rapazes delatou a ação para a polícia e Jaguar conseguiu fugir, procurando abrigo na casa do padrinho. Lá trabalhava por abrigo e comida e era assediado pela esposa do tio. Sugeriu, também para escapar do ambiente hostil, um colégio interno. Nas palavras do tio, ele deveria se tornar um “homem de bem”, e por isso seria enviado ao colégio militar.


Porque o colégio militar é visto como a solução para os problemas de caráter e disciplina dos garotos? “Ser homem” é diametralmente oposto a “ser mulher”. Dessa forma, não ter uma atitude masculina (não brigar, não se impor, não praticar sexo) é já ser feminizado. Ser associado à mulher e às suas características é considerada como o pior da humilhação, pois a mulher não pode participar dos jogos de poder, não pode possuir; ela obedece, abaixa a cabeça, é usada. Nesse contexto, os jovens rapazes são afastados de tudo o que possa ser associado à condição feminina: o ambiente doméstico, os sentimentos de afetividade, os prazeres que não sejam viris, a falta de iniciativa, a passividade, o comportamento não beligerante etc.


A educação para a guerra leva exatamente ao oposto de todas essas inclinações. O exército é visto como o espaço maior de disciplinarização e masculinização de jovens. Através da disciplina militar e no campo de batalha o rapaz cresce e se torna homem, preparando-se para a vida. Os estudantes do Leôncio Prado têm, obrigatoriamente, que passar por esse ritual de masculinização, mas na mesma proporção em que há a opressão e a obrigatoriedade de demonstrar um comportamento específico, também haverá a necessidade de liberdade e resistência, seja em relação à autoridade da escola, do grupo de meninos, ou do pai. A ânsia de liberdade leva os rapazes oprimidos a utilizarem várias estratégias de sobrevivência e de fuga desse contexto hostil.


Fahrenheit 451, Ray Bradbury


"Os negros não gostam de Little Black Sambo8. Queime-o.

[...] Alguém escreveu um livro sobre o fumo e o câncer de

pulmão? As pessoas que fumam lamentam? Queimemos

o livro [...] Os enterros são tristes e pagãos? Elimine-os

também.”


Fahrenheit 451, Ray Bradbury, 1953


Fahrenheit 451 representa, sem dúvida, um clássico literário no cenário internacional, muito superior aos limites da literatura do gênero (nesse caso, a ficção científica). Mesmo tendo sido escrito há mais de sessenta anos, em 1953, as suas sugestivas criações e a força dos personagens criados pelo autor ainda são capazes de interessar milhões de leitores em todo o mundo, assim como de estimular reflexões sobre a contemporaneidade.


O rompimento com a memória é uma característica corrente em muitas distopias. Quando as pessoas desconhecem realidades melhores, bem como experimentos e características nocivas da sociedade em que vivem, são mais facilmente controladas. Para uma melhor visão acerca da obra aqui analisada, são necessárias algumas incursões teóricas sobre o gênero distopia e sua conexão com a sociedade.



O nome distopia foi usado pela primeira vez pelo filósofo John Stuart Mill em uma de suas falas no parlamento inglês no ano de 1868; o conceito, porém, só ganhou certo destaque no século XX. A distopia é um gênero essencialmente arraigado à sociedade e dentre suas características mais marcantes estão a discussão de valores éticos ou morais e a denúncia de suas possíveis deturpações. Nesse sentido, as distopias criam uma sociedade atroz, na qual os indivíduos que ali coexistem carecem de direitos básicos, prerrogativas essenciais para o que se entende por condição humana nestes universos.


Fahrenheit 451, publicado pela primeira vez em 1953, retrata uma sociedade onde livros são proibidos; possuir ou ler um livro é considerado crime e os bombeiros são encarregados de queimar todo e cada exemplar que encontrarem. Cinema, fotografia e outras formas de arte também não estão mais presentes, tendo sido substituídas pelo entretenimento das telenovelas.


Durante a narrativa, acompanhamos a história de Guy Montag, um bombeiro que nos é apresentado como uma pessoa comum nessa sociedade: cumpre seu dever e sente-se feliz desempenhando sua função: “queimar era um prazer”, sem pensar no porquê da execução de seu trabalho. Mas, aos poucos, assistimos a personagem se desenvolver e, a partir do momento em que conhece Clarisse Mclellan, começar a questionar o vazio da vida que ele e as pessoas ao seu redor levam: uma vida movida pelo entretenimento e pela superficialidade das relações.É dessa forma que a narrativa vai se desenvolvendo, tendo como pilar os conflitos internos de Montag e as represálias que ele acaba sofrendo, visto que a sociedade de Bradbury considerava toda forma de reflexão e contestação como subversividades que fariam mal ao sistema como um todo e, sendo assim, estas deveriam ser fortemente repreendidas.


A memória e o conhecimento decorrente do processo de lembrar são instrumentos de poder no manejo da sociedade. O filosofo inglês Thomas Hobbes, no livro Leviathan or The Matter, Forme and Power of a Common Wealth Ecclesiastical and Civil, escrito em 1651, pontua que conhecimento é poder.Nas distopias,onde as discussões sobre o poder nas sociedades estão sempre presentes, vamos observar que governos totalitários vão usar da memória como uma ferramenta para reprimir e coagir a população. Hobbes acreditava também que a sociedade só poderia se despojar da ameaça da guerra com um governo forte e indivisível, porém, neste quesito, as conexões com distopias se distanciam, já que estes governos totalitários muitas vezes não evitam batalhas, mas se estabelecem a partir delas, como é o caso de 1984, de George Orwell Ainda assim, a conexão direta entre conhecimento e poder posta por Hobbes é facilmente observável nas distopias que utilizam o saber ou sua restrição como arma contra as massas. Em Fahrenheit 451, a tentativa de extirpação do conhecimento se inicia pela destruição dos livros: sabe-se que os bombeiros não apagam o fogo, mas o produzem, dilacerando toda forma de conhecimento ou arte que não a veiculada ao/pelo governo.



Outro fator importante é a institucionalização de crime em relação ao conhecimento; o fato de portar tais objetos de conhecimento e/ou disseminá-los é contra a lei. Não obstante, não é só o fato de ser contra a lei que ocasiona um problema, mas a obediência cega à lei e às ordens do governo pela população. As pessoas não apenas acreditavam que o conhecimento era algo ruim, como delatavam pessoas para proteger este sistema. Contudo, ao final da obra, é através da memória que os indivíduos encontram uma maneira de burlarem o sistema opressor, bem como desenvolvem um ideal de comunidade.


As personagens de Fahrenheit 451 deixaram de ler por uma questão individual, por um desencontro de suas vivências com a experiência poética. Entretanto, parte do Estado a iniciativa de censurar, coibir, proibir e, talvez a prática mais significativa nessa narrativa, incinerar os livros. A instituição responsável por esse controle, o Departamento de bombeiro é, inclusive, uma instituição mantida pelo Estado. Entre as regras desse departamento estavam:


1a REGRA. Atenda prontamente o telefone. 2a REGRA. Comece o fogo rapidamente. 3a REGRA. Queime tudo 4a REGRA. Reporte-se imediatamente ao posto dos bombeiros. 5a REGRA. Fique sempre alerta a outros alarmes


A queima de livros, nesse sentido, não era um ato ingênuo ou desprovido de maiores sentidos, mas ao contrário, era um ato político, já que conforme discutimos anteriormente, o controle da memória é parte significativa da manutenção do poder em um governo totalitário. Queimar os livros, nesse sentido, significava apagar grande parte da memória coletiva e do saber adquirido por aquela e por outras sociedades, bem como, impossibilitar que conteúdo contrário às posições governamentais chegasse aos cidadãos. Eles optam, contudo, por eliminar todas as obras, já que, afinal, todas elas possuíam o poder de promover algum tipo de reflexão nos cidadãos. Era de interesse do governo mantê-los distraídos e “felizes”, pois assim não questionariam a forma como o país estava sendo conduzido, conforme fica claro na fala de Beatty:


"Se não quiser um homem politicamente infeliz, não lhe dê os dois lados de uma questão para resolver; dê-lhe apenas um. Melhor ainda, não lhe dê nenhum. Deixe que ele esqueça de que há uma coisa como a guerra. Se o governo é ineficiente, despótico e ávido por impostos, melhor que ele seja tudo isso do que as pessoas se preocuparem com isso"


Quando Ray Bradbury publicou Fahrenheit 451 em 1953, imaginou que suas personagens viviam na virada/começo do século XXI, em um tempo similar com o qual vivemos agora. É possível estabelecer diversos paralelos entre a sociedade distópica de Bradbury e o controle midiático e predomínio das tecnologias que, de certa forma, vêm sendo bastante presente desde os anos 90 em nossa sociedade. É por isso que se torna tão coerente relacionar essa narrativa com diversos pontos discutidos por Walter Benjamin, que pensou tão profundamente sobre as transformações que nosso mundo vinha sofrendo durante a modernidade. Bradbury e Benjamin escreveram em épocas bastante similares e ambos parecem ter acertado em suas previsões para o futuro e, falando a partir de seu tempo, em caracterizar o que viria a ser este período pós modernidade.


Ao falar de arquivo e memória, Bradbury nos mostra que o Estado de Fahrenheit 451 era eficaz em controlar a população – importante lembrar que esse estado não hesitava caso tivesse que queimar junto aos livros o arquivo-corpo também –, e, mais uma vez, nos remete à questões bastante atuais, como a perenidade de todo arquivo e as limitações que a sociedade ainda tem em relação a seleção e preservação de sua memória cultural.


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Débora Pluvie


 
 
 

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