[UNICAMP] Análise do conto "Amor", de Clarice Lispector
- Débora Pluvie
- 15 de fev. de 2021
- 5 min de leitura
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“ E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vez, soprou a pequena flama do dia.”
Antes de tudo, uma dica aos vestibulandos: façam uma leitura atenta buscando os implícitos e as possíveis metáforas do texto, de modo que a interpretação não se torne um fardo e fique mais clara. Por isso, nada de superficialidades por aqui.
Sobre o enredo, podemos delimitá-lo como um texto que conta um dia na vida de Ana, mãe, esposa, uma personagem bem housewife que vive um cotidiano bastante aprazível em seu contexto de classe média – um marido perfeito, filhos bem criados. Ou seja, Ana cresceu para encarnar aquela vida. Neste dia específico, ela sai de casa para comprar ovos, pois cozinharia um jantar que serviria aos irmãos. No caminho de volta, o bonde para e ela observa um homem cego mascando chiclete e aí a personagem mergulha num mar sem fim de pensamentos. Ela volta para casa, o jantar é feito com sucesso e o dia acaba.
A partir de uma leitura superficial, provavelmente você ficaria revoltadíssimo com um enredo tão usual. Entretanto, estamos comentando sobre um texto da gloriosa Clarice Lispector, publicado em 1960. Por isso, leitor, não engane. Em poucas linhas, é posto um mundo em que o insólito acontece e invade o cotidiano mais costumeiro, minando e corroendo a repetição monótona daquele microcosmos vivido por Ana. É como se pouco a pouco desnudássemos um ambiente falsamente estável em uma vida aparentemente sólida que se desestabiliza, justo quando o cotidiano parecia estar marcado pela ameaça de nada acontecer.

“Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia se escolher pelo jornal o filme da noite – tudo feito de modo a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca.”
Dentro desse contexto de múltiplas interpretações, vemos logo no início do conto que “Certa hora da tarde era a mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando mais nada precisava de sua força, inquietava-se.” Esse é o momento que ela sai para comprar ovos e aparece de modo individual entre seus ofícios: ela não era esposa porque o marido estava no trabalho, ela não era mãe, pois as crianças estavam na escola; ela não era dona de casa, dado que a casa já estava arrumada – por isso, essa hora precisava ser preenchida de alguma maneira, e então ela pega o bonde para comprar os ovos.
“No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros.”
Nesse contexto, o narrador nos transmite a perspectiva de uma vida boa, agradável, verdadeira – uma família feliz que acabara de comprar um apartamento. Isso para que tenhamos uma ideia de que tudo que acontecesse dali para frente não estava nos planos dela, e nesse ponto o grande Machado de Assis comenta que “o coração é a região do inesperado”.
É inegável que trazer Clarice e não associá-la à epifania é até um crime. Assim, observe aí uma síntese do que pensam Joyce, Woolf e a própria Lispector sobre:
É momento máximo da revelação do eu. Quando algo extremo que passaria batido por qualquer pessoa faz com que um elemento dentro daquele indivíduo se revele de forma avassaladora.
Isso posto, no momento que Ana enxerga aquele homem desconhecido fazendo algo tão banal e a epifania, desmembrando o tempo psicológico, é produzida não é como se acontecesse um pedido de socorro, de fuga do que ela vivia – mais uma vez: porque a vida era boa. No entanto, quando paramos para analisar “a hora perigosa”, ela precisa encarar o seu próprio ofício de modo independente, já que todos os outros papeis de sua vida já estava cumpridos naquele dia; e ao carregar os ovos, elementos frágeis dentro da sacolinha que ela mesma tricotou, é como se sua própria fragilidade estivesse sendo personificada – e os ovos caem e se quebram.
Além disso, a imagem de um desconhecido mascar chiclete no escuro a faz pensar na vida de maneira muito específica. A vida de Ana é, então, uma espécie de movimentação mecânica também no escuro – porque não existiam reflexões acerca de todos os seus ofícios. Assim, aquele homem torna-se um espelho projetando a sua própria existência.
Simone de Beauvoir em algum momento afirmou que “O presente não é um passado em potência, é o momento da escolha e da ação”. Ana, a partir de então começa a esboçar as plurais possibilidades, caso a sociedade não tivesse escolhido aquela vida para ela.

Por outro prisma, o bacana de pensarmos na outra ambientação trazida pelo Jardim Botânico é que conseguimos enxergar uma nova fatia desse processo epifânico, a sinestesia. Veja:
“(...) o silêncio regulava sua respiração. Ela dormia dentro de si. (...) De longe via a aléia onde a tarde era
clara e redonda (...) Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. (...) Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho. (...) Um movimento leve e íntimo a sobressaltou.”
E nesse mix de sensações, Ana afirma até amar o cego – o que não quer dizer que ela estivesse apaixonada por aquele homem. Atenção! Cuidado com esta interpretação. O que ela, de fato, vê aflorar em si é o amor pelo Outro, pelo Próximo, dando sentido ao título do conto.
Ainda em êxtase pelo furacão que havia acontecido internamente, quando chega à casa, abraça um de seus filhos de maneira tão forte quase a ponto de machucá-lo. “Não deixe que a mamãe de esqueça.” Isso, pois em meio às múltiplas reflexões que teve durante o dia, Ana pensou em abandonar tudo aquilo que construía a tal máquina-vida que lhe cabia. Além disso, sentiu-se encurralada pelo marido e eles descobrem-se. Ela o vê como nunca o tinha visto, presa em sua própria insensatez. Agora ela tem medo de perdê-lo. Sente, então, a necessidade de ser protegida, sem perceber que começara ali uma nova aliança com ele. Acabara-se a vertigem de apenas um dia, como uma pequena chama de uma vela que se apaga antes de findar por completo, afastando-a do perigo de viver.
Galera, nada substitui a leitura integral do conto, que é bem curtinho. Separem um momento de quietude e dediquem-se às epifanias de Ana e às suas também.
Um beijo.
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