top of page

Algodão doce

  • Foto do escritor: Débora Pluvie
    Débora Pluvie
  • 15 de abr. de 2018
  • 3 min de leitura

Algodão doce

- Ele é um perigo.


Era a frase que ecoava em meu ouvido naquela singela noite de chuva regada a uma garrafa de vinho tinto consumida sozinha.


A semana tinha sido mais ordinária que as anteriores e o fim daquele domingo era tão previsível como a minha vontade em te ligar. O novo havia aparecido e remexido a calmaria do meu mar tão em paz como dias. “Onde a terra se acaba e o mar começa”, lembra?


E parece que o mar começou.


Minha terra –ou melhor - paz tinha sido construída com muitas pitadas de paciência, resiliência, álcool e altas doses de fluoxetina – por mais paradoxais que fossem. O novo chegou e eu não senti saudades de você, não te quis; não te desejei como nas outras semanas; não te li – ou melhor li suas cartas – como sempre, a partir do delírio de reviver o desassossego daquilo, meu amor.


Paz. Essa era uma terminologia tão fidedigna a meu eu que parecia ter sido escrita para mim ou por mim apenas com o intuito de enfeitar meu enredo.

Diferentemente da sensação de pedacinho de algodão doce em minha boca como naquela noite, eu havia desejado que você não tivesse existido ou que sua existência fosse tal às minhas boas noites de sono.


“Seis anos” – e a voz teimava em ecoar em meu ouvido; entretanto, não mais com o fulgor desesperador de quem precisa viver a vida inteira em um dia, mas em paz – sibilando cada fonema de uma maneira tão perfeita que me fez sentir satisfeita por ter alimentado genuinamente minha vontade em ter você para mim – por seis anos.


E acabou.


Nada além de algodão doce.


Agora, recomposta após tantos anos brincando de equilibrista, enxergo que fui parte da sua vida bem como te vi na minha – uma fatia, não ela inteira.


Por seis anos eu desenhei a silhueta do teu corpo em minha cama e brinquei de inventar que você estava, de fato, ali e dei forma ao sorriso dos filhos seus que quis ter e comemorei tuas vitórias de modo tão intenso que me fez querer abandonar as minhas conquistas – somente por querer viver apenas as suas e quis teu colo e abrigar no meu as suas aflições e quis guardar nossa história numa caixinha no fundo de minha gaveta de calcinhas – junto a seu número – e revivê-la um número inominável de vezes e quis te embalar como um saquinho de algodão doce – transparente, mas que no fundo, todo mundo sábado, é só plástico – e exibir sua cor ao mundo – até que você ficasse murcho.


Mas.


Cícero disse que em cofre não se guarda coisa alguma e que é melhor assistir a um pássaro voando que um pássaro sem vôos.


O que me fazia te querer todas as vezes e te aceitar de volta sempre que aparecesse?


Você chegava e parecia sorte minha viver todas as múltiplas sensações de meu corpo – tendo você como motivo.


Durante seis anos, meu maior desejo era dormir e acordar todos os dias com um beijo de bom dia no quarto e cheiro de Johnsons baby no banheiro. Meu desejo inventado era ver assistir à telinha do meu filme subindo com “E foram felizes para sempre” junto a uma rua de Paraty, pedras portuguesas e uma cerveja gelada.


Falando em felizes para sempre, você sabia que o final feliz com beijo só foi inventado nos romances do século XVII? Na real, acredito que beijo no final só serve para tranqüilizar todo mundo, dando ideia de que os amantes não vão mais enfrentar obstáculos.


Mas.


Hoje eu vejo que sem obstáculos o amor acaba e que se não há mais o que contar, acabou o romance.


Está decidido – e a escolha não foi minha, foi o acaso, a ficção, a poesia – acabou o romance.


E foi feliz pra sempre.


Tomando vinho.


Ouvindo a chuva passar.


Reclamando da vida ordinária.


Comendo algodão-doce.

Comments


 Deixa eu te contar:

 

"Acordar não é de dentro.

Acordar é ter saída.'

João Cabral de Melo Neto

segue lá:
  • Facebook B&W
  • Instagram B&W
 POSTS recentes: 
 procurar por TAGS: 
bottom of page